domingo, 7 de julho de 2013

O ÁLBUM DE FIGURINHAS Parte III

A CONSCIÊNCIA CRÍTICA

Você já tentou imaginar o mundo sem o cinema?

A alienada
Há prazeres para os sentidos; há alegrias para o coração; a felicidade é só para a consciência. Félix Bouvert

Da época dos primeiros filmes  celulóide em preto e branco até a era da imagem  3D, o cinema deu um enorme salto em sua evolução.
Muita coisa aconteceu desde a primeira exibição ocorrida naquele longínquo ano de 1895 até os nossos dias. O cinema tem passado por profundas transformações estéticas e tecnológicas. No início a evolução foi lenta, do processo de revelação dos negativos aos das novas câmeras, que nos idos de 1890 começavam a capturar movimentos. Depois acelerou, e uma das evoluções mais notáveis foi a substituição da velha e boa película pelo cinema digital. Esse processo evolutivo fez do cinema um dos inventos que mais receberam elogios, o que não o livrou de algumas críticas desfavoráveis. Seus críticos defendem a tese que ele condiciona a mente dos espectadores, notadamente do homem comum aquele despreparado. Consideram-no um objeto de alto poder alienante, aqui, obviamente, empregado no sentido de influenciar e anulação da personalidade do individuo. É fato que conteúdo cinematográfico não está livre de conotações político-ideológicas, pelo contrário, está impregnados do pensamento e crenças de seus realizadores. Não raro, com objetivos claros de persuasão, de mudar ideologias ou conceitos, levar pessoas a pensar e a agir diferente, tendo as mais diferentes das intenções.
Foto histórica: George Eastman, inventor
da película em celulóide, encontra Edson,
à direita, inventor da primeira câmera. 

E isso pode ser facilmente compreendido porque, por meio da linguagem cinematográfica o espectador experimenta as mais diversas sensações como choro, tédio, revolta, amor, ódio e simpatia, como se estivesse numa segunda realidade, ou como num sonho. Segundo ainda seus críticos, por isso a alienação impede que o espectador tenha consciência crítica frente à essas intenções. 

São em situações como essas que cada vez mais se evidencia a necessidade de resgatar o espectador dessa posição alienante mórbida, despertando-o para uma consciência crítica de forma que possa reagir positivamente diante das informações que lhe são transmitidas pelos conteúdos fílmicos.

A indústria do tabaco é um bom exemplo do uso planejado dessa poderosa influência, pois ao explorar bem essa alienação. Durante décadas o cinema induziu, como nenhuma outra arte, seus incautos espectadores a seguir hábitos de seus astros. O que pode ser facilmente constatado nos filmes daquele período, quando na esmagadora maioria das cenas era possível encontrar um astro, homem ou mulher, com um cigarro na mão. 

A ingênua
A virtude da ingenuidade é um troféu que quem possui nunca consegue levantar, devido  a dor que as feridas para mantê-la causam, Nanda Volpe
A vantagem de ser inteligente é que
podemos fingir que somos imbecis,
enquanto o contrário é
completamente impossível.

O espectador comum, ingênuo, é naturalmente refratário e apático a qualquer tipo de análise ou interpretação mais profunda de um filme, principalmente filosófica. E esse desleixe deve-se em sua grande parte ao seu desconhecimento da linguagem cinematográfica. Diletante, na maioria das vezes sem uma bagagem cultural mínima que o permita criticar, suas reações revelam certa simplicidade ou uma tendencia ao simplismo na interpretação de uma obra cinematográfica. 

Esse perfil de espectador tem por hábito encarar sua decisão de assistir a um filme, apenas como prática de lazer, e não também como uma fonte de aprendizado, uma oportunidade de descobrir idéias novas e de progredir. Em sua infinita simplicidade, ou maneira simplista de enxergar as coisas o faz encarar o ato de ver um filme apenas para 'matar o tempo', sem maiores compromissos que não o de se divertir. Não se importa com criticas em relação ás suas interpretações, para ele ir ao cinema trata-se apenas de um exercício de diletantismo. O que é um expediente fácil de quem deseja apenas se isolar em uma visão de mundo preconcebida e imune a qualquer confrontação com os fatos. 

Esse perfil de espectador não é dado a frequentar nas videolocadoras, por exemplo, as prateleira onde se encontram os filmes classificados como 'cinema de arte' ou 'papo cabeça'; pelo contrário, passam longe. São obras que exigem um pouco mais de esforço mental ou intelectual, e isso definitivamente não é com ele. Não porque seja menos inteligente que o espectador engajado, em absoluto, mas sim por que é indolente, apático; não se interessa por aprofundamentos filosóficos de qualquer natureza.
   
Fotograma de Morangos Silvestres (1957),
onde o relógio é emblemático; na infância

Bergman tinha hábito de nunca chegar na hora
aos seus compromissos, e era castigado por isso. 
Por esse motivo, nunca o veremos se preocupar com a busca existencial dolorosa em Ingmar Bergman (1918-2007), com a expressão lírica em Bernado Bertolucci (1941), com a arma política em Costa Gravas (1933), ou com a refinada crítica social em Woody Allen (1935). Justamente por isso, os filmes desses grandes cineastas, com algumas raríssimas exceções, serão encontrados na lista dos blockbuster. Eles não produzem filmes para as massas. 

A mente indolente é reticente a qualquer tipo de investigação, geralmente por partir do princípio de que tudo sabe. Satisfaz-se só com as experiências emotivas, sendo avesso ao esclarecimento. É frágil na discussão dos aspectos culturais do filme, apoiando-se mais no campo das emoções, em prejuízo, portanto, das sociológicas, antropológicas e  filosóficas. É portador de forte conteúdo passional. Não procura a verdade. Toda concepção lógica para ele é um mero jogo de cena. Como não tem como se aprofundar e se defender, acaba como vítima, manipulado.

A única forma de protegê-lo é colaborando com sua educação, estimulado-o a mudar, primeiro, o modo de pensar. Preparando-o para que seja crítico em relação aos acontecimentos, para assim poder entender os valores estéticos, culturais e filosóficos que estão sendo propostos, e, mais importante, reagir frente a eles. Em nome do bom senso, portanto, não é admissível ou aconselhável que se abandone uma sala de cinema da mesma forma que se entrou, isto é, totalmente ignorante. Tal comportamento deixa o espectador vulnerável. Porém, o grande desafio é a predisposição para aprender. Como disse Churcill: "Estou sempre disposto a aprender, mas nem sempre gosto que me ensinem.". 

A engajada
A mente que se abre a uma nova idéia, jamais voltará a ser a mesma.  Einstein

A consciência critica, contrariamente à alienada ou indolente, é, por natureza, questionadora. É grande observadora, atenta; experimenta, problematiza e verifica os fatos. Portanto, pensar de maneira crítica trata-se de uma forma poderosa sara demolir inverdades, falsas teorias, ou fatos manipulados. Este padrão de intelecto não aceita injunções ou qualquer tipo de manipulação − como exemplo vide 'Crítica 001', de Argo (2012), neste blog. Essa postura permite estabelecer a razão, as causas e o sentido filosófico das coisas. Importa, pois, aprender cinema como se aprende a ler e escrever. Defendo a tese que é necessário ensinar cinema a todos, inclusive iniciando-se pela escola primária, da mesma forma que se aprende a interpretar um texto, deve-se aprender a interpretar um filme.

A mente crítica substitui sofismas ou explicações fantasiosas, para consubstanciar-se em princípios filosóficos, experiências sociológicas e antropológicas bem sucedidas. Procura verificar ou testar as descobertas. Não tolera preconceitos. Repele acomodações. É intensamente inquieta; Indaga, investiga. Cinema é muito mais que apenas diversão. Há décadas estudiosos se debruçam ao estudo sobre seu significado filosófico e sua grande influência. Em seu livro “O Cinema Pensa – Uma introdução à filosofia através dos filmes”, Julio Cabrera ensina o espectador à, diante da tela do cinema, encontrar o que chamou de “conceitos-imagem”, conteúdos em parte racionais em parte sensíveis, transmitidos por quaisquer filmes. Segundo ele, esses conceitos especiais trazem concepções a respeito da realidade e devem ser encarados como verdadeiras teses filosóficas.

Ao se analisar uma obra cinematográfica é importante lembrar, que o imaginário nos leva à catarse, possibilitando a identificação com determinados personagens e situações.  Esta tendência natural, nos permite viver emoções e sensações novas, ou reviver antigas. Segundo Morin, essa mágica chama-se ‘processo de projeção’. Esse é o movimento que possibilita nos colocarmos no lugar do outro (empatia) - não confundir com simpatia-,  experimentando assim suas sensações.


Da mesma forma que é necessário conhecer a gramática de uma determinada língua para se escrever um texto, o mesmo se dá para se fazer um filme. A diferença é que no cinema se usa o plano no lugar das palavras. O plano cinematográfico diz respeito á posição que a câmera fica em relação ao assunto, que pode ser objetos ou pessoas; é o enquadramento. O nome plano é dado para o assunto capturado pela câmera de uma forma previamente planejada, ou concebida. Os tipos de plano, não são muitos, com exceção do detalhe e do plano conjunto, têm uma relação íntima com o corpo humano. Isto quer dizer que os enquadramentos têm referência através de partes do corpo e só são válidos para seres humanos.

Exemplo de posicionamenro plongée (câmera acima dos personagens),
no filme E.T. - O Extra-Terrestre (1982), de Spielberg..   
Existem outros elementos importantes na composição do linguagem do cinema, rica de possibilidades narrativas. O som é um deles, e esses elementos ganham força, tendo como base nossa imaginação. De uma maneira simplória, no caso do som, por exemplo, a coisa funciona assim: ele se divide em três categorias: locução, trilha sonora e efeito sonoro. Já no caso da imagem, sua comunicação é construída de duas formas: primeiro pelo conteúdo da imagem, e segundo pela forma com que ele é captado. Esta particularidade em captar a imagem, sua distância e o seu posicionamento influencia dramaticamente na dramaticidade do que está sendo mostrado. E esta capacidade de aumentar ou diminuir a dramaticidade de uma cena é uma das características mais elementares e marcantes da linguagem cinematográfica.

Poster de A Marca da da Maldade
Ela obedece a uma relação simples mas genial, que foi definida como ‘a distância do plano em que a câmera capta a personagem é igual à distância da personagem para o espectador’. O cineasta David Griffith foi pioneiro na utilização deste enquadramento e, por este motivo, é considerado o pai da linguagem cinematográfica. O plano de abertura do filme A Marca da Maldade (1958), é um dos mais ambiciosos e espetaculares já realizados pelo cinema. São três minutos e vinte segundos em que a câmera do genial Orson Welles (1915-1986), executa quase todos os movimentos que é capaz: vai à frente, sobe, desce, recua, está ora em plongée (posição acima do personagem), ora em contra-plongée (posição abaixo). E Orson Welles, que em 1941 revolucionou as técnicas de filmagem introduzindo importantes inovações com Cidadão Kane, não não ficou só por aí. Neste que é um dos planos mais fantásticos já filmados, ele atravessa vários quadras de uma pequena cidade na fronteira dos Estados Unidos com o México. As filmagens apresentaram enormes dificuldades, principalmente para o responsável pela iluminação, pois a cena foi realizada à noite, e para a coordenação exigida pelos movimentos dos personagens. 

Dois belos exemplos de Plano Americano: Hitchcock a esquerda em Intriga Internacional, e Ford em Rastros de Ódio a direita.
Vale aqui destacar o plano americano cujo posicionamento de câmera é muito utilizado. Ele enquadra o personagem (humano) do joelho para cima, portanto é impossível fazer um plano americano de um objeto, pois não possui joelho. Esta sua característica facilita a visualização  e reconhecimento da personagem e a movimentação da mesma. Este plano é envolto em controvérsias, e também foi inventado por Griffith, que chegou à conclusão de que a distância da câmera ao personagem, usada na época - câmera estática filmando o ator por inteiro exigia dela uma alta capacidade dramática, para que pudesse entendida pelo espectador. Com este plano, a mera se aproximava mais da personagem, permitindo que ela melhorasse sua expressão, ficando mais natural. 

Em vista do exposto, fica evidente que só será possível entendermos este processo se desenvolvermos um espírito crítico perante o cinema, e evitar assim nossa alienação. Qualquer espectador que não saiba refletir diante de um filme já se posiciona numa atitude inferior, defensiva e pouco racional. Ele pode até ser muito culto no campo verbal ou algum outro, mas não passará de um analfabeto no campo visual. Portanto, tentando fazer uso tanto quanto possível de uma linguagem direta, clara e sem rebuscamentos, este tópico foi construído com intensão de ser um alerta, chamar a atenção para o problema. O espetador que desejar se posicionar como agente transformador, terá que estar disposto a aprender. Terá que ser incansável na busca da informação seja onde ela estiver, em blogs e sites especializados, livros, ou qualquer outro meio disponível. Vai pesquisar, vai estudar, refletir e evoluir.

A sugestionável
Enfiar na cabeça dura das massas a devoção a Hitler, como o Deus da nova Alemanha, tornou-se o meu objetivo único. Goebbels 

Eat popcorn and drinke Coke.
Como produto cultural popular o cinema é uma fonte de entretenimento preferencial das massas. Esta sua característica o credencia como instrumento ideal para doutrinamento através de mensagens subliminares ou explicitas. Para provar esta teoria, em 1956, um sujeito chamado Jim Vicary fez um experimento interessante. O negócio funcionava de uma forma bem simples: com um segundo projetor, projetava uma mensagem sobre a tela na velocidade de 1/3000 de segundo, ou seja, de forma imperceptível a olho nu, mas sim para o cérebro. A mensagem continha a seguinte informação: ‘Eat popcorn and drink Coke” (Coma pipoca e beba Coca-Cola). Só em um cinema de Nova Jersey a venda de Coca-Cola aumentou em 57,7% e em 18,10% de pipoca. O teste provou que em uma sala de exibição, desligado de qualquer outro estímulo, o espectador vive uma outra experiência ou realidade.

Yves Montand em A Confissão
Não é por acaso que o cinema pode ser considerado uma arma política como mostram os filmes Z (1969) e a Confissão (1970)  de  Costa-Gravas (1933). Sua filmografia discute do terrorismo de estado aos dilemas do sistema financeiro. Atualmente com 80 anos, e com o filme O Capital (1912) acabado de sair do forno,  ele descarta a o título de 'cineasta político'. "Faço filmes sobre o que vejo", afirma. Mas, segundo ele "todos os filmes são políticos. Não há nada mais político do que um filme de super-herói.". Como diria o saudoso Chico Anísio: "E é mentira Terta?"  

Esta característica mensageira do cinema, frequentemente o faz vítima de censores, mormente em regimes autoritários. Porém, este mesmos regimes fazem uso desta característica seu favor, para atender seus interesses políticos ideológicos. A história possui vários episódios que servem ilustram este uso. Um dos mais notáveis foi protagonizado pelo Dr. Paul Joseph Goebbels (1897-1945), ministro da Propagando de Adolf Hitler (1889-1945), na Alemanha Nazista. Personagem chave do regime, Goebbels ficou conhecido por sua retórica, mas também por exercer severo controle sobre as instituições educacionais e os meios de comunicação. Soube como ninguém de sua época, utilizar o poder das imagens para atingir os objetivos nazistas.
Goebbels.

O cinema, na Alemanha Nazista,  ele foi largamente utilizado como um dos principais meio de difusão de idéias, pelo sistema de propaganda. Os nazistas valorizaram o cinema como um poderoso instrumento de propaganda. O interesse que Hitler e Goebbels teve pelo cinema não era apenas fascínio pessoal. Usá-lo como instrumento para propaganda tinha sido planejado pelo Partido Nazista desde 1930, quando se tornou o primeiro partido a estabelecer um departamento só para o cinema. As imagens produzidas pelo cinema podem atingir objetivos de forma impiedosa, se desejado, fazendo uso de poderoso arsenal como meio de persuasão. Principalmente para o espectador alienado.

Ser crítico
Os melhores críticos são os que efetivamente contribuem para melhorar a arte que criticam. Ezra Pound

A análise de uma obra cinematográfica possui características
recursivas próprias, que evoluem de modo empírico.
Em primeiro lugar, permitam que mencione um pensamento de Luis Espinal (1932-1980), segundo o qual “a crítica não é para dar uma ‘interpretação verdadeira’ sobre uma obra cinematográfica, porque ela não existe. Não existe porque o cinema não é preciso como o mecanismo de um relógio suíço. Carrega uma enorme gama de subjetividade e de sentido oculto, tanto para seu criador, como para seu espectador.”

Isto posto, começo por mencionar algumas ideias preconceituosas que circulam pela rede  a respeito do crítico de cinema. Por sinal, pouco lisonjeiras, elas atestam que o tipo, em sua maioria são esnobes; que qualquer um pode ser crítico de cinema; questionam se o papel do crítico contribui de fato para melhorar a arte que critica; que são apenas sujeitos frustrados pela incompetência de não poderem brilhar por trás de uma câmera; que passam o tempo metendo o bedelho onde não deviam; que crítico é o cara que gosta dos filmes que ninguém gosta, blá, bla, blá.. Tudo, obviamente, sandices.

Existe uma parcela, pequena, que realmente são esnobes. Tratam seus leitores com desdém e não respeitam sua inteligência e sensibilidade. O restante é folclore; pura inverdade. Como afirmou o francês André Bazin: “o crítico de qualidade é um sujeito que ao invés de trazer uma verdade inexistente numa bandeja de prata, prolonga o máximo possível o impacto da obra de arte".

Não tenho formação acadêmica em cinematografia. Tudo que consegui aprender sobre esta arte foi como autodidata. Conhecimentos que foram se acumulando pela visão atenta dos milhares de filmes vistos; um curso aqui outro acolá; e muita, mas muita leitura. Considerando que comecei a despertar interesse pelo assunto precocemente, aos quatro anos de idade, através de um inesquecível ‘álbum de figurinhas’ – título deste post −, sobre astros e estrelas de Hollywood; que fui pela primeira vez a um cinema aos cinco anos; que desde então nunca parei de ver filmes e ler sobre o tema, e que já cruzei a barreira dos sessenta, não fica difícil concluir de onde se origina meu modesto conhecimento.

Quem sabe lá no último escaninho do meu inconsciente talvez eu também seja um cineasta frustrado. Não acredito, definitivamente não é minha praia. Prefiro seguir o sábio ditado "Saber não saber, é saber. Não saber não saber, é não saber." Ou “Nunca se achar demais, porque tudo que é demais sobra, e tudo que sobra é resto e tudo que é resto vai para o lixo”, nos ensina essa frase de desconhecido.
Por Luiz Alvarenga

Nenhum comentário:

Postar um comentário