domingo, 5 de janeiro de 2014

UM CONTO CHINÊS (Un Cuento Chino, Arg. 2011)

Uma jóia argentina para aqueles que acreditam que na vida nada acontece por acaso 

Como é reconfortante saber que existem lugares produzindo filmes inteligentes, no lugar da violência generalizada, gratuita e desproporcional, que se tornou a ênfase dos filmes produzidos em Hollywood.



O que há para se aprender com o ótimo cinema argentino 

Primeiramente, vamos dar uma rápida olhada sobre o que significa a expressão “novo cinema argentino”. É assim denominado os filmes dirigidos por cineastas argentinos – mesmo que financiados por capital não argentino –, que abordam problemas relativos à realidade argentina, e que foram produzidos a partir da segunda metade dos anos 90 até os dias atuais. É importante ressaltar, que existe uma certa distância destes da principal corrente do cinema argentino, representado pela continuidade da obra e da produção de nomes já consagrados dentro e fora do país há muito tempo, como Fernando Solanas (1936-), Adolfo Aristarain (1943-) e Marcelo Piñeyro (1953-), entre outros. O chamado novo cinema argentino está mais ligado à série de série de rupturas – jovens diretores recém-saídos da FUC – Universidad Del Cine. É interessante lembrar que os dois movimentos alcançaram o auge e foram consumidos como parte de um mesmo fenômeno, ou seja, foram recebidos de modo indistinto em todos os cantos do planeta. Esse fenômeno, ou seja 'a marca' cinema argentino acabou se tornando uma garantia de qualidade nos vários festivais de cinema fora da argentina. 

Excetuando o cinema sul-coreano, desde a década de 90, quando o fenômeno ocorreu com o Irã que produzia filmes de qualidade e em profusão, não se via tantas produções de qualidade saírem de um mesmo lugar. É notável também como se foi consolidando o rótulo “cinema argentino” na crítica especializada em todos os cantos do planeta. Dos últimos filmes argentinos que assisti, não consigo encontrar sequer um que privilegie a violência. O que tenho visto é uma nova estética onde prevalece o elemento surpresa e um variado repertório com roteiros de qualidade apoiados na grande tradição literária argentina, capazes de contar uma história com criatividade e sutileza. E sutileza é elemento fundamental nas artes. Sutileza ao abordar a singularidade do cotidiano, a comédia existencial, a psicologia dos personagens, e outras características responsáveis pela conquista cada vez mais frequente de prêmios e fãs pelo mundo afora.

O mais talentoso representante dessa safra de diretores é uma mulher. Seu nome é Lucrecia Martel (1966-). Dela, podemos citar três longas, muito interessantes: O Pântano, 2001; A Menina Santa, 2004; e A Mulher Sem Cabeça, 2008. E Martel está muito acima da média desses representantes, e talvez seja a melhor cineasta viva e atuante da América Latina – acompanhada pelo mexicano Carlos Reygadas (1971-) e pelo nosso compatriota Júlio Bressane (1946-). Martel representa uma categoria de profissionais que não aparece todo dia, portanto ela não representa a média do que se faz na Argentina. Exceto por Lisandro Alonso (1975-), que se aproxima dela em ambição e criatividade, do qual cito duas obras: Os Mortos, 2004; e Liverpool, 2008.

Cena de O Pântano, de Lucrécia Marter
Dessa safra é importante ainda não esquecermos os seguintes: Mariano Cohn (1975-) e Gastón Duprat (1969-) e que filmam juntos O Homem ao Lado, 2009. Carlos Sorín (1944-) com o O Cachorro, 2004 e A Janela, 2008; Juan José Campanella (1969-) com O Mesmo Amor, a Mesma Chuva, 1999; O Filho da Noiva, 2001; e O Segredo dos Teus Olhos, 2010; Daniel Burman (1973-) aparece com Esperando o Messias, 2000; Pablo Trapero (1971-) com Leonera, 2008); e, finalmente, Sebastián Borensztein (1963-) com o ótimo Um Conto Chinês, 2011), que estamos, agora, comentando. Creio que nesta lista, ainda que curta, constam os cineastas argentinos que talvez não tenham ambições artísticas tão intensas quanto as de Martel e Alonso, mas que desenvolvem um trabalho autoral sem, contudo, abrir mão da qualidade é importante acrescentar, com características que agradam ao grande público que vai ao cinema para se emocionar. 



Para o diretor de Um Conto Chinês, maior sucesso de bilheteria argentino em 2011, o bom momento passa por uma mudança de paradigma. Segundo ele, "os cineastas perceberam que para gerar uma indústria importante é necessário fazer cinema de gênero e não apenas cinema marginal ou de autor". A aposta dele foi uma comédia dramática com um grande astro para atrair espectadores, o ator Ricardo Darín (1957-). "O Darín tem público próprio, é capaz de levar 200, 300 mil pessoas ao cinema. Se o filme é bom, o número se multiplica", diz Borensztein.

Por quanto tempo ainda teremos queouvir que um filme argentino ruim é melhor que um bom filme nacional? O que diferencia o cinema argentino do nosso, do mesmo período, seja em qualidade artística e abrangência temática? Esse novo cinema argentino é mesmo assim tão superior? O que devemos aprender com eles? São questões que merecem reflexão. Mesmo considerando o papel positivo dos subsídios estatais fornecidos desde 1994 pelo Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales, que desenvolve por lá uma interessante política de fomento que levanta recursos por meio de taxas sobre a venda de ingressos, aluguel nas locadoras e arrecadação das emissoras de televisão. creio que existam outros fatores até mais importantes que podem responder á questão acima.

Entre eles está a variedade. as formas experimentais, as releituras da tradição neo-realista, nas comédias de costume e os melodramas. O cinema feito na Argentina é plural, produz de tudo. Filmes de arte, independentes, comerciais, comédias, aventuras, fantasias, românticos etc. Em sua maioria, quase sempre, Buenos Aires é o lugar preferido, quando não, são locaçõe importantes na história do vizinho. Nenhum deles deixa de exaltar o que há de bom no traço característico do povo, ou de falar sobre os problemas ou aquilio que não dão certo por lá. Portanto, o novo cinema argentino se estende por vários gêneros, atendendo a variados gostos. Talvez, mais uma vez não há como afirmar cem por cento, o que encanta no novo cinema argentino resida no fato de não ter um estilo bem definido, ou uma escola, o que se explica por sua multiplicidade. Já nosso nosso cinema, em sua boa parte, está calcada em filmes denuncistas, que se satisfazem na estética do feio, da caricatura social e política, da violência e dos conflitos sociais. Estamos afastados do lírico, do poético.

Cada doido com sua mania
A gente não se liberta de um hábito atirando-o pela janela: é preciso fazê-lo descer a escada degrau por degrau. Mark Twain

Robero em sua loja de ferragens.
Antes de mais nada, Um Conto Chinês já nos passa uma lição: como o cinema argentino tem a capacidade de produzir obras de alta qualidade, que combinam apelo popular com empenho criativo e baixo orçamento. Qual fórmula é essa que vem sendo perseguida pelos nossos cineastas? Por aqui, com algumas exceções, sucesso de bilheteria e qualidade artística ainda são qualidades que andam dissociadas. Mas não estou aqui para reacender esta antiga polêmica sobre fazer filmes que atraiam público sem subestimar sua inteligência, tipo E aí, comeu? que usa o velho truque do canalha arrependido, e que só o título me causa arrepios.

O filme é uma comédia carregada de dramaticidade e altas doses de humor negro. Narra o encontro casual entre um chinês e um argentino, gerando uma situação considerada clichê do humor: a convivência forçada entre tipos antagônicos que, aos poucos, passam a compreender um ao outro e partem das rusgas para uma reviravolta em suas vidas.

É o terceiro longa-metragem dirigido por Sebastián Borensztein, que também é autor do roteiro. Sebastian é filho de Tato Bores, figura histórica e notória da comédia argentina. O filme conta com uma fotografia competente que ganha um pouco mais de cor com a presença de Jun. A composição da imagem e cenários contribuem com eficácia para o entendimento da personalidade e estado de espírito dos personagens, mas nada que seja esteticamente inovador. A trilha sonora de Lucio Godoy (1958-) está compatível e realça o que se quer contar. 

O argentino é Roberto, interpretado pelo veterano e sempre ótimo Ricardo Darin. Roberto é um desertor solitário, amargurado, metódico, do tipo arrogante e ranzinza, mas honestíssimo e antipaticamente cativante.  Ele lutou na Guerra das Malvinas, foi tratado como prisioneiro, fugiu e, ao chegar em casa, viu que o pai antes de morrer guardara um recorte de jornal sobre o conflito que mobilizou a Argentina contra a Inglaterra nos anos 80. No rodapé, uma fotografia dele. Desde então, com o absurdo do acaso, ficou com mania de colecionar recortes de jornal que relatam mortes bizarras. Foi assim que chegou à notícia da vaca que caiu dos ares, na China.

Roberto é um sujeito tão irritantemente metódico e refém da rotina, que toda noite, ao se deitar, espera o relógio anunciar 23 horas para apagar a luz do abajur. É proprietário de uma pequena loja de ferragens em um bairro humilde de Buenos Aires. Mata o tempo contando parafusos, outra de suas manias. Misantropo, leva uma  vida previsível e monótona, faz questão de manter distância das pessoas que o cercam. É arredio, não se abre para o mundo, mas no fundo tem um bom coração. Como solitário de carteirinha, sua vida sentimental é nula, vive resistindo estoicamente às investidas de Mari - Murial Santa Ana (1970-), filha de um amigo. Ela traz uma dose de beleza e alegria a este mundo sombrio e solitário, já que a história conta praticamente com os dois homens. Ela é um daqueles personagens carismáticos pelos quais todos facilmente se apaixonam. 

Colecionar miniaturas de animais feitos de vidro e oferecê-los como presente à falecida mãe, a quem cultua, é outra das manias de Roberto. É  mais uma forma de escapismo à sua solidão. Funciona como uma terapia ocupacional, maneira de afastar a loucura. E mostra que não podemos compreender as relações sociais somente através de aspectos econômicos, ou achar que estes são sempre os responsáveis pelos demais. Tais objetos representam para ele o que há de mais valioso em sua vida, e quando algo afeta esses bens, cujo valor não é econômico, mas simbólico, afeta seu equilíbrio emocional acarretando um momento de crise. 

Como uma vaca pode mudar uma vida
Corro perigo. Como toda pessoa que vive. E a única coisa que me espera, é exatamente o inesperado. – Clarice Lispector

Jun com a noiva, instantes antes da vaca cair sobre ela.
O longa começa com um grupo de ladrões tentando roubar um rebanho bovino, tendo como meio de transporte um pequeno avião. Em seguida, os criadores e donos dos animais partem armados e em disparada atrás da aeronave, tentando salvar os animais. A iniciativa dá parcialmente certo: os disparos contra os gatunos acabam por desestabilizar a aeronave. Do alto, já distante da fazenda onde o episódio ocorrera, uma vaca despenca e atinge um barco num lago. O choque mata uma moça chinesa cujo namorado estava prestes a lhe fazer o pedido de casamento. Inspirado em uma história real que se passou no Japão, na qual um barco de pesca japonês é atingido por uma vaca enquanto navegava em alto mar, o filme argentino endossa a máxima que o absurdo é intrínseco ao humano.

Quem não se comunica se trumbica
Se você falar com um homem numa linguagem que ele compreende, isso entra na cabeça dele. Se você falar com ele em sua própria linguagem, você atinge seu coração. - Nelson Mandela

Como vencer a barreira da língua?
Tudo começa a mudar para Roberto, quando o chinês Jun, Sheng Huang (1980-), aquele cuja noiva foi atingida pela queda da vaca, surge de repente em sua vida. O interessante é que o encontro dos dois ocorre por uma quebra da rígida disciplina de Roberto em manter certa distante das pessoas. Jun vagueia perdido pela cidade de Buenos Aires, em busca de um tio, o único membro vivo da família, além dele próprio. Roberto presencia Jun ser jogado na rua de dentro de um táxi, depois de ser agredido pelo motorista. Resolve então socorrê-lo, sem imaginar, entretanto, que aquele gesto colocaria seu cotidiano de pernas para o ar.

A partir daí cria-se um laço entre eles. Então, unida pelo acaso, a dupla, que mal consegue se comunicar direito, estabelece uma relação de solidariedade, estranhamento e aversão. Jun não fala uma palavra de espanhol e Roberto idem com o mandarim. Não sabe de onde Jun veio ou para o que veio. Mas ele está ali, perdido, ferido, sozinho e desesperado. 

Inicialmente, para livrar-se rapidamente de Jun, Roberto para em uma delegacia de polícia, mas não obtém sucesso. Procura então socorro na embaixada chinesa. Mas ninguém resolve o problema de Jun. Sem alternativa, não se vê obrigado a levá-lo para casa, pois acima de seu apego à vida solitária está seu senso humanitário, que o impede de deixar o chinês abandonado na rua como um cão sem dono.

Um Conto Chinês, além dos absurdos que apresenta, é um ótimo exercício para os interessados pelo estudo da comunicação interpessoal, que traz na trivialidade elementos interessante sobre o assunto, relações e os vínculos criados a partir destas. Entre mímicas e troca de olhares, Roberto e Jun tentam estabelecer algum diálogo, mesmo que explicitado pelo não-dito. Quando Roberto percebe que não vai conseguir livrar-se tão facilmente de Jun, muito a contragosto permite que o estranho more em sua casa, mas por prazo determinado. Até encontrar o tal tio cujo nome está gravado no braço de Jun. Com o passar do tempo, após várias tentativas frustradas de se livrar do chinês, os laços que unem os dois começam a se fortalecer, pelo afeto e pela empatia. Elementos da comunicação humana, que com o uso de gestos, olhares, expressões faciais e silêncios, dispensam a linguagem falada para duas pessoas poder se comunicar.


Entre as muitas cenas que merecem destaque, está a do jantar na casa de Mari, quando a comunicação precária, permeada pelo silêncio, ultrapassa as barreiras culturais apoiando-se nos gestos e na troca de olhares. Roberto é incapaz de perceber a comunicação implícita no olhar. Por um momento, ali, parece que ele é o estrangeiro. Etrovertido, Jun tenta imitar a maneira como os argentinos que o cercam comem: usa talheres, suga o tutano do boi de forma atrapalhada. Mari se insinua para Robeto, que, no seu casulo, não percebe a troca de olhares. Atento, Jun sorri. 


Mats tarde, a moça iria se declarar para ele, afirmando que o deseja e, mesmo para ela que fala sua língua e vem tentando passar seu afeto em várias oportunidades, ele não consegue estabelecer com ela uma ligação afetiva. 

Mesmo quando mais próximo de seu final o filme torna-se melodramático, seguindo a clave agridoce e perdendo a fina ironia argentina inicial, que sabe tirar o riso de uma situação dramática dos personagens, ele não perde o prumo e descamba para o sentimentalismo barato. O segredo está na maneira surpreendente com que Borensztein amarra os destinos de Roberto e Jun para além daquela improvável convivência. 

Exorcisando demônios
Quando os ricos fazem a guerra, são sempre os pobres que morrem. - Jean-Paul Sartre

Quanto tempo se leva para superar uma guerra perdida?
Acertar as contas com um passado indesejado é um grande desafio para quem entrou em uma guerra. Nessa tarefa inglória, a arte e, no último século, principalmente o cinema tem exercido um papel importante nesse processo. Para exorcizar os traumas, Hollywood deu sua parcela de contribuição produzindo nas últimas décadas daquele século, um sem número de filmes sobre a guerra do Vietnã. Geralmente tratando de dramas psicológicos vividos por seus combatentes. O mesmo já havia ocorrido na mesma Hollywood, décadas antes, com um sem número de 'filmes de índios' sobre o expansionismo ao oeste que causou o extermínio de muitas nações indígenas.

Como os americanos, Borensztein demonstra audácia cutucando de maneira arriscada uma caixa de marimbondos, quando resgatar o lado sombrio, trágico e humilhante da história recente dos argentinos. Mas com a competência já demonstrada em outros trabalhos, consegue fazer a coisa funcionar. Seu objetivo foi o de mostrar como os episódios imponderáveis e absurdos das lendas urbanas, podem ser incrivelmente parecidos aos da vida real. pois morrer atingido por uma vaca que despenca do céu, diz o filme, é tão estúpido quanto tombar em uma guerra sem sentido. Mas acontece. 


Em entrevista a uma blogueira argentina, o diretor Sebastián Borensztein comenta que para ele, a vaca que cai do céu é um absurdo tão grande quanto a Guerra das Malvinas. O trauma da Argentina contemporânea que deixou centenas de soldados sobreviventes humilhados e até loucos.  “O conflito das Malvinas, que conformam um ponto importante do filme, é um tema de minha geração, e que me pegou de uma maneira forte porque, por casualidade, eu não participei diretamente dele, e por isso sempre quis falar do assunto, em minha língua e com minha idiossincrasia”, comentou.

Por Luiz Alvarenga

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