domingo, 9 de junho de 2013

LINCOLN (Lincoln, 2012 - EUA)

Talvez o maior mérito do filme de Spielberg, tenha lhe custado o Oscar 2013.

O consagrado cineasta mostra um estadista progressista em seus últimos meses de vida, lutando para convencer um governo e congresso dividido num momento decisivo da nação americana. 

Quem foi esse mito republicano 
"É melhor calar-se e deixar que as pessoas pensem que você é um idiota, do quer falar e acabar com a dúvida.". - Abraham Lincoln

Revivido de forma magnífica pelo inglês Daniel Day-Lewis (1957) , trabalho que acabou lhe rendendo a estatueta de melhor ator em 2013 − Abraham Lincoln (1809-1865), é o personagem central do filme de Spielberg. Nasceu em 1809, no Estado de Kentucky, no sul dos Estados Unidos e se tornou o 16º presidente americano. Filho de um homem da fronteira, sua vida foi cercada de desafios. desde cedo teve que lutar para sobreviver trabalhando duro. Soube, porém, enfrentar as adversidades, se esforçando para estudar enquanto trabalhava em uma fazenda e dirigia uma loja em Illinois.

A luta por ideais diferentes.
Antes ainda de se tornar presidente, em 1858, durante sua campanha para o senado, Lincoln já mostrava sua preocupação com a divisão da nação ao proferir em discurso que “Uma casa dividida não pode se manter em pé”. Apesar de perder a eleição na ocasião, sua defesa pela união do país e por ideais abolicionistas garantiram os votos que o elegeriam presidente dois anos mais tarde.

A importância histórica de Lincoln se explica por sua luta em defesa da unidade do país, fazendo dele um personagem histórico e impar na história dos Estados Unidos da América. Provavelmente, sua eleição em 1860 tenha tornado a Guerra Civil inevitável com a decisão da Carolina do Sul de se separar da União, seguida por outros estados do Sul no ano seguinte, formando um bloco independente do governo, que chegou a somar 11 estados.

Cena inimaginável na política dos EUA, 
de Lincoln até início do século XXI .
Durante este período o país foi marcado por dois acontecimentos distintos porém transformadores: pelo apogeu da expansão americana em direção ao oeste e pela divisão política, social e econômica entre os estados do Norte e do Sul, sobre questões controversas - especialmente o trabalho escravo. 

O país conviveu durante 80 anos com esses dois modelos econômicos. Mas as diferenças entre o Norte e o Sul acentuaram-se dramaticamente chegando a um ponto insustentável, que culminou com o conflito militar que entrou para a história como a Guerra de Secessão. As questões que o geraram residiram no fato que os estados do Sul tinham uma economia baseada no latifúndio escravagista e na produção agrícola, principalmente de algodão. Enquanto isso, os estados do Norte defendiam a abolição da escravidão e possuíam suas economias baseadas na indústria. A abolição da escravidão acabou ocorrendo em 1865, pelo Ato de Emancipação assinado por Lincoln.

Esta diferença de interesses foi a responsável por deflagrar o conflito, que teve inicio em 1861, através de ações militares do sul. Com duração de cinco anos, a guerra provocou a morte de aproximadamente 600 mil pessoas. Os estados do Norte, mais ricos e preparados militarmente, venceram e impuseram seus interesses sobre o país. 

O famoso Discurso na inauguração
do cemitério  militar em Gettysburg.
Para obter a vitória Lincoln usou de uma estratégia muito inteligente, ao conseguir convencer os negros da necessidade de seu apoio pois, caso o Sul saísse vencedor nunca ganhariam a liberdade e a escravidão se expandiria para o resto do país. 

Após obter vitórias em sucessivas batalhas, Lincoln conseguiu se reeleger e passou a discursar sobre direito ao voto para os negros. A ideia irritou o confederado John Wilkes Booth, um ator inexpressivo que acabou atirando contra o presidente em 14 de abril de 1865, uma sexta-feira santa, achando que ajudava a causa do Sul. Ele tirou a vida de Lincoln no Teatro Ford em Washington. Apesar da abolição, os negros não tiveram nenhum programa do governo que lhes garantissem a integração social, permanecendo marginalizados pela sociedade. Somente em 1954, uma decisão histórica da Suprema Corte americana, pôs fim à segregação racial nas escolas públicas do país. 

"Eu tenho um sonho..."
"Aprendemos a voar como os pássaros, a nadar como os peixes; mas não aprendemos a arte simples de vivermos junto como irmãos."  - Martin Luther King
Um dos símbolos máximos 
da intolerância racial. 
Não é possível escrever uma linha que seja sobre segregação racial, mormente nos Estados Unidos, sem que se dedique algumas delas à Klu Klux Klan. 

Foi no ano de 1866, no estado do Tennessee, sul dos Estados Unidos, que se fundou um clube social que tinha como membros  os soldados que haviam sido derrotados na Guerra Civil Americana. Vestidos com capuzes brancos e cruzes incandescentes, o clube na verdade tratava-se de uma organização secreta, de cunho unicamente racista.  Seu objetivo inicial era impor resistência à política abolicionista aprovada pelo governo durante a Guerra Civil. Suas ações principais eram intimidar os negros, na maioria das vezes com atos de violência, para garantir a supremacia branca no país. Com o lançamento de uma a nota de repúdio à eleição de Barack Obam, ficou demonstrado que ela não esta definitivamente extinta. 

"I have a dream that one day this nation will rise up and live out the true meaning of its creed: "We hold these truths to be self-evident: that all men are created equal.". Martin Luther-King

O racismo e o cinema
"A única razão pela qual consegui sair na capa da Vogue francesa, foi porque Yves Saint Laurent ligou para a revista e disse que retiraria seus anúncios se não me colocassem." - Naomi Campbell 

Al Johnson em o Cantor de Jazz
Ao longo de seus pouco mais de cem anos, a questão do racismo já foi tema de várias produções cinematográficas. Em algumas de maneira politicamente correta, em outras nem tanto. Já no primeiro e controvertido clássico O Nascimento de Uma Nação (1915), de Griffth, os negros foram representados por atores brancos com o rosto pintado de preto. O negro chegou a ser homenageado, porém permanecendo em seu devido lugar. Outro exemplo pouco edificante está em O Cantor de Jazz (1927), outro exemplo, que ganhou recentemente uma luxuosa versão comemorativa em bluray. Nele o cantor de jazz, um negro, é interpretado por Al Johnson, um branco, também com o rosto coberto por uma ridícula tinta preta. Até mesmo em obras que o negro interpreta a si mesmo, a situação não é tão diferente. A cantora Billie Holliday, ícone do Jazz, participou do cinema interpretando uma empregada doméstica que ensina a patroa branca a cantar. Estes exemplos estavam distantes do dia que Sidney Poitier dá um tapa em um branco racista, no clássico No Calor da Noite,(1967), de Norman Jewison. Foi um avanço. O cinema continuou produzindo, em algumas examinando, dissecando e condenando das mais diversas formas, o racismo. Entre algumas dessas produções, cito abaixo duas visões do problema:


Os agentes do FBI investigando  a morte
de ativistas dos direitos civis  brutalmente
assassinados no Mississipi em 1964.
A primeira obra selecionada é o ótimo Mississipi em Chamas (1988), de Alan Parker, talvez tenha sido a obra mais contundente já feita sobre o racismo no Sul dos Estados Unidos. O filme, baseado em fatos reais, retrata com rara sensibilidade a triste história da insanidade que imperava no sul dos Estados Unidos. Ele expõe de maneira crua e sem rodeios todas as mazelas de uma sociedade reacionária, hipócrita e falso-moralista, que acreditava ser os negros seres inferiores, incapazes de pensar e cuja existência se justificava somente para servir. A verdade é que o racismo não deixou de existir nos Estados Unidos, principalmente nesta região do país onde ele apenas não é abertamente declarado como naqueles tempos,  mas persiste de forma velada. 

A segunda selecionada é Advinhe Quem Vem Para Jantar (1967), de Stanley Kramer, que causou muita polêmica ao mostrar um casal de noivos diferente, ela branca, ele negro. Como podem notar, em 1967 já haviam se passados treze anos que a Suprema Corte pôs fim à todo e qualquer tipo de segregação. Ainda assim, após a longa e sofrida luta pelos direitos civis, a sociedade americana ainda teimava em aceitar o fim da segregação. O filme retrata com fina ironia este comportamento da sociedade, mostrando um casal (Spencer Tracy (1900-1967) e Katharine Hepburn (1907-2003), educado, muito liberal, progressista, mas que se transforma e fica chocado quando sabe que sua única filha está noiva de um homem bonito, culto, porém negro. 

O mago das imagens  
"Quando eu crescer, ainda quero ser um diretor." - Steven Spielberg

Ninguém, de posse de suas faculdades mentais pode duvidar do talento do cineasta Steven Spielberg (1946), para contar histórias, especialmente as chamadas de cinema-catástrofe. Tudo começou em 1969, com a história de um casal de jovens, que se encontra no Deserto de Mojave. Era, seu primeiro curta profissional, chamado Amblin. Por ele ganhou um contrato com a Universal, onde teria a oportunidade de dirigir o seu primeiro longa-metragem, Encurralado (1972), e com este a notoriedade começou a chegar. Produzido para a televisão, mas que no Brasil foi lançado nos cinemas. O filme impulsionou de vez a carreira do desconhecido diretor, então com 26 anos. Daí para se transformar no mago do cinema-espetáculo foi uma questão de tempo, muito pouco diga-se de passagem. Desde então, nunca mais a indústria do entretenimento seria a mesma, pois Spielberg a  transformou em um mega e rentável negócio, batendo recordes acima recordes de bilheterias em todo o mundo. 


Era comum ver as pessoas dobrarem quarteirões em filas para ver seus filmes. Com ele o cinema mostrou a natureza das formas mais variadas, ousadas e violentas. O cinema-espetáculo  de Spielberg é incomparável do ponte de vista visual, por sua extraordinária concepção estética. É enorme sua capacidade de envolver o imaginário humano captando o que parecia impossível de ser filmado, de ser concebido. Sua visão particular do extraordinário está retratado na maioria de seus filmes catástrofe e de ação.      

O primeiro deles nos chegou passados apenas três anos após o sucesso  de Encurralado. Spielberg dirigiu Tubarão (1975), considerado a obra seminal dos filmes catástrofes que faturou mais de 100 milhões de dólares no verão americano. O filme causou frisson no mundo inteiro. Entretanto, o tom melodramático notado em suas últimas produções acabou por fazer dele alvo de críticas. Inteligente e sensível, parece ter ouvido as críticas feitas ao seus trabalhos mais recentes, todos regados aos violinos de John Williams, parceiro desde Tubarão. 

O mito na visão do mago
“Todo o acesso a uma alta função se serve de uma escada tortuosa.” Francis Bacon

As últimas edições do Oscar não foram muito favoráveis para os grandes estúdios de Hollywood. O Discurso do Rei (2010), vencedor em 2011, e O Artista (2011), vencedor em 2012, foram  distribuídos pela The Weinstein Company, uma empresa independente dos irmãos Weinstein com sede em Nova York. O ano de 2013, porém, mostrou que a locomotiva hollywoodiana voltou aos trilhos e a disputa ficou entre os grandes estúdios. No final,  dois cineastas da casa: Ben Affleck (1972), um jovem, e Steven Spielberg, um veterano. brigaram pelas estatuetas. Além dos dois maiores favoritos, Argo distribuído pela Warner, e Lincoln pela Disney, os demais concorrentes também são de grandes estúdios: As Aventuras de Pi distribuído pela Fox, A Hora Mais Escura pela Columbia e os Os Miseráveis pela Universal. Todos produzidos em 2012.

Lincoln (2012), o novo longa (aqui não é apenas uma metáfora) de Spielberg, foi o campeão de nomeações em 2013. Concorreu a 12 categorias, mas que na cerimônia foi obrigado a se contentar com apenas duas: Ator e Desenho de Produção. 


Imaginem nosso alferes com 
sua imagem arranhada.
Analisando o filme à luz dos fatos históricos, não os maquiados dos livros escolares, mas os verdadeiros, talvez aí possamos encontrar uma explicação plausível pelo resultado pífio da premiação de Lincoln. Uma que justifique como um filme ganhe tão poucos prêmios em relação ao tão grande número de indicações recebidas. Como já havia mencionado na crítica de Argo, os bastidores da 'velha Senhora' são insondáveis à pobres mortais, e suas decisões tem lá seus caprichos. É bem comum vê-las influenciadas, quando há interesse, numa direção político-ideológica, o que pode ter ocorrido com o filme de Spielberg. O choque provocado pelas verdades que seu filme expõe, contrariam as crenças conhecidas nos livros escolares sobre a história do estadista Lincoln. Elas são muito maiores do que é possível suportar. São tão difíceis de digerir que acabam por levantar suspeitas e nos ajudam a entender porque um diretor do calibre de um Steven Spielberg, perde 10 Oscar de um total de 12 indicações, e um dos dois mais importantes para um novato. Não é segredo para ninguém, que os americanos têm uma carência patológica por heróis. estão sempre criando novos, e não gostam que imagem dos existentes sejam maculadas. O novato, como afirmei na crítica de Argo, ao contrário de Spielberg, preferiu em seu filme manipular a verdade para enaltecer a CIA e transformar seu agente em herói, criando uma peça de pura propaganda imperialista. Já Spielberg, contrariando tudo a que o público americano idolatra, preferiu contar a verdade que incomoda, e inconveniente demais para permitir uma consagração como algo entre 8 a 12 Oscar. Tentem imaginar um cineasta brasileiro fazendo um filme que jogue por terra a edificante história da Inconfidência Mineira, revelando situações desabonadoras sobre Tiradentes, nosso herói nacional, Sofreria a mesma punição.   


A Lista de Schindler. Lincoln apesar 
de muito bom, está um nível abaixo.
Quanto ao filme em questão, entre suas qualidades, que não são poucas, aquelas que se supõe constituem os fatores que o levaram a receber um número recorde de indicações este ano, certamente está sua competente direção. É bom refletirmos que, à luz da razão, que um filme não pode receber 12 indicações sem ter nada a oferecer. Não haveria seriedade nisto. Dentre essas qualidades, de início podemos destacar seus complexos jogos políticos, a recriação dos intensos diálogos e o rebuscado inglês arcaico usado na época. A cada momento o filme apresenta detalhes e sutilezas que, por mais atenção que se tenha, podem passar despercebidos da primeira vez, justificando a necessidade de se revê-lo mais de uma vez. Mas não só por isso. Lincoln não é um filme como os costumeiros do diretor, recheados de efeitos especiais e muita emoção. É um filme que exige e induz à reflexão, é para um espectador mais amadurecido, com mais bagagem cultural. Para a maioria dos demais, acredito que não será valorado como merece e irá parecer dos mais tediosos do consagrado diretor, mais até que Amistad (1997). Porém, apesar de ser um grande filme, que tem como personagem central o mais importante dos presidentes dos EUA, não está no mesmo nível que o ótimo A Lista de Schindler (1993). 


Ótimo trabalho de maquiagem 
em Daniel Day Lewis.
É importante esclarecer que, ao contrário do que muitos pensam ou foram induzidos a pensar, o longa não é uma cinebiografia do estadista Lincoln, o que não vejo como uma falha ou demérito. Paradoxalmente, Spielberg declarou ter sido esse um dos motivos que o levou a realizá-lo, pois havia uma lacuna na cinematografia de Hollywood em relação ao grande líder. Segundo ele, contudo, não era necessário endeusar mais um presidente que já tem sua cara estampada em todas as notas de cinco Dólares. Apesar das declarações, o que se vê em seu filme é um personagem retratado com excesso de reverência, e não apenas como o homem que se sobressaiu em sua época.  

Na verdade, o filme aborda um brevíssimo período da vida de Lincoln, apenas os últimos quatro meses de sua vida, no início de 1865. Apesar do cunho não biográfico, creio que o filme peca por não mostrar a cena de seu assassinato. Não se sabe ao certo o que levou Spielberg a não incluir os momentos finais de Lincoln. E eles são importantes, principalmente porque foi o primeiro presidente americano a ser assassinado por estar envolvido com a causa do racismo, e também uma das causas pelas quais  entrou para a história.


A ênfase do filme está nos bastidores do poder da política norte-americana, na segunda metade do século XIX. O final deste século foi uma época de grandes mudanças nos EUA. O país estava em ebulição, sofrendo com uma guerra fratricida que dizimara mais de 600 mil vidas, partidos ainda em formação na busca de uma identidade ideológica, direito a voto e a economia dividida entre o Norte industrializado e o Sul escravagista e rural.

As principais ações se desenrolam neste momento histórico, quando a derrota militar do Sul estava iminente e é preciso negociar como o país deverá sair da terrível guerra. Com um roteiro bem estruturado, o filme mostra qual é o verdadeiro debate daquele momento. E talvez aí esteja mesmo o maior trunfo de Spielberg quando faz opção por mostrar, sem reservas, os momentos mais importantes da vida política do grande estadista. Aqueles que o levaram a conseguir o feito de abolir a escravidão em um país racista até a medula, e sua luta para acabar com a guerra e mantê-lo unido.

Há méritos também por abordar seu lado humano, enfatizando seus erros, acertos, dúvidas e certezas, Com este propósito Spielberg se concentra na difícil batalha parlamentar que Lincoln se empenha, para aprovar a 13ª Emenda Constitucional que irá abolir com a escravidão. E o faz sem receio de mostrar as entranhas da política americana, com seus ideais e ambições, mas, principalmente, os bastidores do poder e os salões de Washington. 



A solidão de quem sabe que suas 
convicções contrariam interesses 
poderosos. 
Lincoln sabe que o momento é propício, que conta com enorme apoio popular, mas que está isolado da elite e que tem desafetos dentro de seu próprio governo. porém, inteligente, reconhece que não pode deixar escapar o momento favorável para atingir seus objetivos. Entretanto, em vez de se valer dos tradicionais acordos que por anos garantiram a manutenção da escravidão, vemos que Lincoln não conquistou a Emenda com debates acalorados e idealistas, como deveria se esperar. Muito menos com ações probas, sorrisos e tapinhas nas costas. Pelo contrário, Spielberg mostra que o jogo do poder, como em qualquer época ou lugar, é brutal e desumano. Não há espaços para idealismos tolos. Ao colocar seus ideais abolicionistas como condição para a paz, Lincoln bate de frente com seus adversários, que querem manter o status quo. Em primeiro lugar querem garantir a paz, para, em seguida, confortavelmente, negociar a questão escravagista, com um final  que todos podem imaginar.

Brigando entre os dois lados do conflito, está de um Congresso onde Lincoln tem pequena vantagem, mas que é perigosamente insuficiente para aprovar uma emenda constitucional que contraria interesses de meia nação; e, do outro, um Republicano progressista e determinado que contrariando os ideais republicanos, luta contra as elites de seu país para extinguir a escravidão, tornando-se assim precursor nas lutas pelos direitos civis. 

Spieberg desenvolve com sensibilidade um Lincoln que coloca seus ideais e visão acima de tudo e de todos, inclusive dos próprios interesses. Sua obstinação é tamanha que o leva a quebrar seus ideais éticos para atingir seus objetivos, protegido por correligionários poderosos e de tradição, e usando o poder de sua oratória, uma de suas maiores habilidades.


Um homem cuja arma era a oratória.
Em determinado momento, acompanhado pelo piano do compositor John Williams (1932), ocorre uma discussão sobre a ética dos meios nada nobres utilizados por Lincoln para atingir suas metas, estas sim, nobres. O que se vê na tela são conchavos, coação, chantagens, sofismas, nomeações de cargos (mesmo com tudo isso, aqueles personagens do século XIX ficariam ruborizados diante dos nossos Mensaleiros), para que a emenda seja aprovada. 

Aqui permitam-me abrir um parênteses, para falar sobre John Williams, atualmente o compositor norte-americano mais premiado da história da música cinematográfica e parceiro antigo de Spielberg. Williams já recebeu 45 indicações ao Oscar, ganhou cinco vezes e é o segundo artista com maior número de nomeações, ficando atrás somente do grande Walt Disney (1901-1966), este com 59. Além de tudo isso, já foi indicado 21 vezes para Golden Globe Awards, dos quais levou para casa 4 e já conseguiu 59 indicações para o Grammy, dos quais guarda 20 em sua estante. Importante: estes números referem-se somente até 2008. Sua indicação por Lincoln, por exemplo, não está computada. 


Frame do filme O Sexto Sentido, usada para denunciar 'manipulação'
de votos na Flórida a favor de Bush, nas eleições de 2004.
Se por um lado Lincoln precisou entrar em diversas negociatas e complicadas maquinações políticas, por outro este jogo político permitiu um avanço que mudou a história americana e abriu novas perspectivas de prosperidade também para além das suas fronteiras. Vale lembrar que a luta política nos EUA daquele período, em nada difere do vale tudo que vemos hoje na atual política americana, ou de qualquer outra nação. Para exemplificar, basta que recordemos o episódio ocorrido na Flórida, há dez menos de anos, com a releição de Bush. Para aqueles que imaginaram que a política americana é diferente da nossa, que lá o jogo é mais democrático e se desenrola com um maior pendor para os valores morais, o filme é enfático para desfazer esta impressão.

Sem dúvida, Spielberg e Daniel Day Lewis com sua magistral interpretação. mostram que o ex-presidente parece ter sido uma personalidade cativante, culto, exímio contador de casos, e que morre atormentado com as consequências da guerra e pelas atitudes que precisou tomar. Porque, apesar de sua integridade moral, precisou fazer uso das mesmas artimanhas políticas que condenava com veemência em seus adversários. Mas
Lincoln era um homem cujas convicções eram inabaláveis. Sensato e muito inteligente, sabia que defendia ideias muito á frente de sua época e que contrariava muita gente poderosa. Sabia que a liberdade e a unificação do país não viriam sem um alto custo a ser pago.

Entre os bons momentos do filme está o protagonizado pelo sempre competente Tommy Lee Jones (1946), no pape. de um republicano radical e ferrenho defensor da abolição. Seu personagem sempre defendeu não só a liberdade mas principalmente direitos iguais para os negros. Entretanto, contrariando uma crença defendida há mais de dez anos, para que a emenda não fosse derrotada, redefine sua frase no Parlamento para "Eu não vejo igualdade em tudo, só igualdade perante a Lei.". Após a Emenda sair vencedora, leva a Ata com a 13ª Emenda para uma negra, sua companheira. 

Mas o filme teve alguns pecados também. Um deles, é que não foi possível encontrar um único negro sequer com papel de destaque em todos os seus 150 minutos, considerando que o racismo é seu assunto principal. E não era por falta deles não, pois haviam muitos em Washington naqueles tempos, a maioria fugidos do sul. E pior, nenhuma menção  ao ex-escravo Frederick Douglass, exímio orador e escritor e amigo pessoal de Lincoln. Por que este esquecimento?


Mary Todd implorando de joelhos, e depois se estatelando no chão 
para que o filho fosse poupado da guerra, enquanto outras mães já 
haviam perdido mais de 600 mil filhos pela causa do marido, é patética. 
Outro pecado, este uma falha, acontece com o papel da esposa de Lincoln, entregue à veterana atriz Sally Field (1946), com um desempenho sem muito brilho, mesmo considerando sua indicação ao Oscar. Algumas das cenas de seu personagem não encontram respaldo nos anais da história, como as que mostram Mary Todd Lincoln acompanhando os debates nas galerias ladeada  pela criada, e as da contagem dos votos na vitória da emenda. A cena em que foi às lágrimas então, estatelada no chão e implorando ao marido para que o filho vá para a guerra, é patética. Outra, é a que exige ser chamada de 'Madam President. Tão embaraçosa quanto as duas anteriores, é a dela reclamando por ser investigada pelas despesas na Casa Branca. 

Outro equivoco, este admitido pelo próprio roteirista Tony Kushner (1956), foi o que ele se desculpou pelos '15 segundos' de erro histórico. Depois das reclamações de um legislador do estado de Connecticut, que lamentou a cena em que dois representantes de seu estado votam contra a abolição da escravidão em 1865.

Para encerrar, destaquei dois bons momentos: primeiro, o que considero a 'cereja do bolo', talvez a melhor sequência do filme: aquela dos congressistas discutindo a abolição. Em determinado momento, um democrata, indignado, pergunta: “O que virá a seguir, negros votando?!”. E todos fazem um coro de reprovação. Mas ele perssiste: “E se os negros passarem a votar, o que virá depois? As mulheres votando?!”. As feministas de plantão devem ter um ataque quando assiste estes instantes . Com razão; nada mais machista. O segundo, elogiar a decisão de Spielberg de não ceder à tentação, como fez seu adversário do Oscar em Argo, maquiando a história e manipulando para fosse mostrada uma versão mais edificante. Parabéns!


Por Luiz Alvarenga  

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