sábado, 15 de junho de 2013

SE MEU APARTAMENTO FALASSE (The Apartment, 1960 - EUA)

Billy Wilder, um virtuosi da imagem constrói mais uma obra prima. Uma comédia  recheada de amargura sobre a solidão humana, com perfeito equilíbrio entre o trágico e o cômico. 

Como na maioria de suas obras, Wilder consegue abordar com sensibilidade a solidão humana e assuntos que eram tabus nos anos 60, como o adultério e a relação da mulher no trabalho, nos brindando com uma comédia brilhante e melancólica.  



A Era de Ouro
"Toda época tem a sua moral dominante, que não deriva nem da religião nem da filosofia, porque a moral é a soma dos preconceitos da coletividade." Anatole France


Provavelmente, o leitor estará se perguntando que motivo pode levar um um blogueiro a  comentar filmes de 50 ou mais anos atrás. A resposta é bem simples: porque muitos deles, de tão bons, conseguiram resistir ao tempo mantendo o mesmo frescor e fascínio  da época de seu lançamento, os mais férteis da história do cinema. E, finalmente, o desejo sincero de levar à geração atual um pouco de luz sobre alguns dos grandes e insuperáveis clássicos já produzidos. Filmes que resistem ao tempo unicamente pelos méritos que possuem.


Poster do filme.
Hollywood viveu um período muito produtivo, tanto quantitativa quanto qualitativamente entre as décadas de 30 a 40, conhecido como 'Época de Ouro'. As técnicas de produzir filmes desse período, de renomados diretores, sofreram grandes avanços e influenciaram Hollywood por vários anos. Essa influência chegou muito forte até a década de 60. As gerações de cineastas que surgiram em seguida à essa época se utilizaram das técnicas desenvolvidas naquele período, e mesmo nos dias atuais são largamente utilizadas. Podemos destacar desse período as seguintes produções que viraram clássicos: Psicose (1960), Lawrence da Arábia (1962), Três Homens em Conflito (1966), 2001, Uma Odisseia no Espaço (1968) e Meu Ódio Será Tua Herança (1969), sabendo que ficaram  muitos outros tão bons quantos, sem serem citados. 

O cinema e a solidão humana
"Todo o inferno está contido nesta única palavra: solidão." Victor Hugo
Para o filósofo alemão Martin Heidegger, a solidão é o estado inato do Homem, cada ser está por si só no mundo. Assim, cada indivíduo nasce sozinho, morre na mesma condição e vive suas experiências pessoais também desta forma, por mais que esteja sempre cercado de outras pessoas, pois ninguém pode vivenciar seu aprendizado, cabe a cada um enfrentar sua própria travessia. 

Para a psicologia, a  solidão é um sentimento no qual um indivíduo sente uma profunda sensação de vazio e isolamento. É uma condição interior do Homem, uma sensação de carência absoluta, de um objetivo ou um desejo, que sempre se desloca, gerando na alma esta percepção da falta.  

Sociologicamente pode-se afirmar que a solidão é fruto da marginalização social, portanto ela pode ser coletiva (quando um determinado evento afeta um grupo ou uma nação, por exemplo), ou individual. Porém, a sensação é a da exclusão da sociedade convencional, por inadaptação ou pela recusa em seguir determinados parâmetros fixados socialmente. De acordo com psicologia, quem não consegue conviver com seus semelhantes é, de certa forma, expulso do meio, e assim se sente sozinho.


O filme de Will Smith Eu Sou a Lenda
 retrata a solidão humana em uma de
suas formas  mais cruéis. 
O cinema sempre se interessou pela solidão humana, e se inspirou na literatura existente sobre o tema, para tentar retratar a incontestável dependência humana. Muitos livros serviram de base para roteiros de filmes por conta de sua abordagem poética em relação a solidão, como o famoso clássico Robinson Crusoé,.de Daniel Defoe, publicado em 1719,  O livro, uma autobiografia fictícia do personagem-título, narra um náufrago que passou 28 anos, sozinho, em uma remota ilha tropical. 

Outro exemplo é o filme Náufrago (2000),  dirigido por Robert Zemeckis (1951-), onde o personagem vivido por Tom Hanks (1956-), o inspetor Chuck Noland sofre um acidente de avião e fica preso numa ilha completamente deserta por quatro anos. Para não ficar 'lelé', Chuck cria um amigo imaginário chamado Wilson, personificado em uma bola de futebol (bela propaganda), sua única companhia. Inteligente, sabe que precisa lutar para sobreviver, física e emocionalmente, para que não esteja louco quando a oportunidade de retornar à civilização surgir. Assim, age como se a bola fosse o interlocutor de suas conversas e receptor de seu afeto.

A nação americana pós 'depressão', provocada pelo capitalismo, foi afetada por este sentimento. Nenhuma outra crise econômica na história dos Estados Unidos produziu efeitos tão devastadores sobre a sociedade como aquela decorrente da quebra da bolsa de valores de Nova York, ocorrida em outubro de 1929. De um dia para outro pareceu aos americanos que haviam perdido tudo. Suas economias de anos, seus depósitos bancários e o valor da suas ações simplesmente evaporaram. Os pilares supremos que a América fora constituída ficaram profundamente ameaçados por uma crise seguida de depressão econômica que parecia não ter mais fim. 

Fila da sopa e rosquinhas grátis para os
desempregados pela crise de 1929
Os EUA foi exemplo do sucesso do capitalismo laissez-faire, um dos poucos países a se desenvolver sem a interferência estatal ostensiva. Portanto, a crise que a partir de 1929 devastou a economia, teve conseqüências ímpar para a maneira de viver dos americanos e para a concepção de autonomia e independência que eles até então tinham. 

A marginalização social gerada pela crise descambou na solidão coletiva.. Muitos sentiram-se excluídos da sociedade naqueles anos.  Os executivos de Hollywood souberam enxergar a indústria do cinema como uma parcela importante na recuperação econômica (royalties), bem como servir como instrumento para a recuperação do moral da população. Por isso, muitos dos filmes desse período deram atenção à aspectos humanistas, enaltecendo os valores nobres.

Frank Capra na sala de Edição
Destacam-se nesse período os filmes do diretor Frank Capra (1897-1991), um dos mais comprometidos com o projeto de recuperação do moral americana. Uma de suas maiores contribuições, sem dúvida, foi a obra prima A Felicidade Não Se Compra, de 1946, e que será comentada futuramente no blog. É bem verdade que os filmes produzidos nesse período perdem em tecnologia para os atuais, mas somente nesse quesito, é bom que se diga. Diferem da mediocridade da maioria, por terem privilegiado o lado artístico e não somente o comercial. Por isto sua perenidade.

O virtuosi e sua época
"Porque as pessoas loucas o bastante para acreditar que podem mudar o mundo, são as que o mudam. Jack Kerouac

Bem no início dos anos 60, ouvimos de um russo a exclamação 'A Terra é azul!', pronunciada do espaço pelo astronauta Yuri Gagarin, que entraria para a história como o primeiro homem a admirá-la do espaço. Era 1961, e a década já começava com mais combustível na fogueira do imaginário de uma juventude que seria conhecida por beatnick. Uma juventude que queria se livrar do moralismo rígido da sociedade dos anos 50, expressão remanescente do Sonho Americano que não conseguia mais empolgar sua juventude. Mais tarde iria se tonar uma das décadas mais vibrantes e invejadas da história. 


Edição brasileiro do livro de Kerouac.
Os 60 foram, acima de tudo, vivenciados por essa explosão de juventude em todos os aspectos, e influenciados por movimentos culturais importantes como o rock de garagem à margem dos grandes astros do rock, que resultaria na surf music e nos movimentos de cinema que ficaram conhecidos por 'cinema de vanguarda'. Outra importante foi a literatura de Jack Kerouac com seu livro 'On the Road' de 1957. Kerouac fazia parte da chamada geração beat que começava a se opor à sociedade de consumo vigente. Os ventos das transformações sopravam por todos os lados e atingiram também a moda, que sofreu uma mudança radical. Com o fim da moda única, passou a ter várias propostas e a forma de se vestir se tornava cada vez mais ligada ao comportamento. Foi também uma época maniqueísta na qual, influenciado pela Guerra Fria, ou você era comunista ou capitalista, bom ou mau, moça de família ou de má reputação, rapaz bem-comportado ou rebelde, heterossexual ou degenerado e etc..

Assim, pode se dizer que a década de 60 representou, no início, a realização de projetos culturais e ideológicos alternativos lançados na década anterior. O movimento, que nos 50 vivia recluso em bares nos EUA, foi para as ruas nos anos 60 influenciando novas mudanças no comportamento da juventude como a contracultura e o pacifismo do final da década. 


O álbum Sgt. Pepper's Lonnely Hearts 
Club Band", dos Beatles, de 1967, um
marco no no meio das mudanças.
mundo todo encontrava-se realmente em um processo de profundas mudanças, tanto cultural quanto nos variados grupos sociais. Alguns historiadores afirmam que os anos 60 estão claramente divididos em duas etapas. A primeira, que vai até sua metade, 1965, onde prevalecia uma certa inocência e até de lirismo nas manifestações sócio-culturais. No âmbito da política estava claro o idealismo e o entusiasmo no  espírito de luta do povo, influência remanescente do pós guerra. A segunda metade, de 66 até seu final, com o clímax atingido em 68 com a deflagração da revolta estudantil na França (já comentada no blog em 'O Álbum de Figurinhas - Parte I'). A partir de 1969 já se percebe o estado de espírito que definiria a década seguinte. O tom começou a subir tornando-se mais duro, surgiram as primeiras experiências com drogas, a perda da inocência, a revolução sexual e os protestos juvenis contra a ameaça de endurecimento dos governos. Esta mudança é refletida nas manifestações artísticas. Como exemplo podemos citar os Beatles, que trocou as baladas inocentes como Yesterday pela excentricidade psicodélica, incluindo orquestras, letras surreais e guitarras distorcidas como A Day in the Life, que representa bem o espírito da mudança.

Portanto, os jovens no início da década de 60 sonhavam com um mundo novo, bem diferente daquele que tinham herdado. E demonstraram isso através da rebeldia. No começo ainda ingênua, inspirada pelo rock dos bem-comportados Beatles em início de carreira. Mas que com o correr do tempo perceberam que as mudanças não eram setão iminentes ou simples assim. 

Os ventos das mudanças atingiram também a meca do cinema. O filme BlowUp - Depois Daquele Beijo (1966), de Michelangelo Antonioni (1912-2007), fez um enorme sucesso entre a juventude americana. E, conseqüentemente, obrigou os estúdios americanos a repensar suas estratégias e contratar uma leva de jovens cineastas que trouxessem novas idéias para produzir novos filmes. 

Como resultado, surgiram produções que dificilmente voltaremos a presenciar. Naqueles anos ainda se experimentaram a influência do período mais fértil do cinema. O país já se encontrava totalmente recuperado da 'depressão' causada pela crise do capitalismo e produzia bons filmes. Havia em Hollywood muitos talentos, novos e já consagrados na arte de dirigir; um dos maiores era Billy Wilder (1906-2002).

 O virtuosi, o ingênuo e a mocinha diaraque
“Se um ator entra pela porta você não tem nada. Mas se ele entra pela janela você tem uma situação.”  Billy Wilder


Wilder rodeado pelos Oscar
de The Apartment.
Se Meu Apartamento Falasse recebeu dez indicações ao Oscar em 1961 e ganhou seis, entre eles os dois mais importantes: Melhor Filme e  Direção. Um deles foi para a dupla Alexandre Trauner (1906-1963) e Edward G. Boyle (1893-1973), pela Direção de Arte em preto-e-branco. Tara-se de comédia magistral, que esteve censurada por aqui na época de seu lançamento. Os costumes, contudo, se encarregaram de corrigir esse excesso de zelo de nossos vitorianos sensores da época. Ao revê-lo hoje percebe-se que continua com o mesmo frescor e vigor, e que comparado às cenas que vemos diariamente nas novelas globais, ele é de uma candura digna de ser exibido em qualquer convento de freiras sem que nenhuma delas fique ruborizada.

Seu enredo é relativamente simples, e tem como cenário principal o apartamento de um funcionário de uma grande seguradora nos anos 50, onde as coisas acontecem. Seu nome é Calvin Clifford Baxter, interpretado pelo brilhante Jack Lemonn (1925-2011). 


Baxter representando o conflito essencial entre
o sujeito ao mesmo tampo ingênuo e oportunista.
    
Mais conhecido por Baxter, ele é jovem e vive uma cruel rotina que não o impede, contudo, de cultivar suas aspirações de um dia subir na empresa. É solteiro, solitário, ambicioso e gosta de fazer cálculos. Tem a sorte ou o infortúnio, de morar sozinho num apartamento alugado, sem nenhum luxo, porém muito bem localizado no centro de Manhattan, nas imediações do Central Park. E assim ele vai levando sua vidinha medíocre sem maiores contratempos e sem grandes emoções.

Apoiado por sua ótima equipe de roteiristas Billy Wilder consegue criar com esses elementos simples um texto brilhante, recheado de diálogos inteligentes, trocadilhos e jogo de palavras, responsável em grande parte pelo charme do filme. Para contar essa história Wilder recorre a uma técnica muito utilizada por alguns cineastas, principalmente por Alfred Hitchcock (1899-1980), o insuperável mestre do suspense, que se valia dela para aumentar o suspense em seus filmes. A técnica consiste em permitir ao espectador ficar numa posição privilegiada em relação a um dos personagens, recebendo uma generosa quantidade de informação com o desenrolar da história. Assim, primeiro, permite que o público saiba que Baxter empresta seu apartamento aos seus superiores, todos adúlteros, para seus encontros amorosos com suas subordinadas; segundo, que Baxter tem uma inclinação pela ascensorista Fran Kubellik, interpretada por Shirley MacLaine  (1934-), uma espirituosa e bem comportada moça. 


O trio fantástico que sustenta a trama: Jack Lemmon,
Shirley MacLaine e Fred MacMurray.
.Este filme superlativo começa com uma tomada aérea da cidade de Nova Nova York. Depois um plano geral mostra um edifício, para em seguida exibir um andar com incontáveis mesas, enquanto ouvimos em off a voz de Jack Lemmon dizer o seguinte: "No dia 1º de novembro de 1959, a população de Nova York era de 8.042.783 pessoas. Se você pusesse todas essas pessoas deitadas, enfileiradas, imaginando uma altura média de 1,70 metro, elas chegaram da Times Square até os arredores de Karachi, no Paquistão. Sei desses fatos porque trabalho num empresa de seguros – a Consolidated Life de Nova York. Somos uma das cinco maiores companhias do país no ramo. Nossa sede central tem 31.259 empregados, o que é mais do que toda a população de, hum..., Natchez, Mississipi. Eu trabalho no 19º andar. Setor de Apólices Comuns, Divisão de Cálculo de Prêmio, Seção W, mesa número 861.”
C.C.Baxter na seguradora onde trabalha, cujo contraste com uma 
empresa moderna é evidente.
Billy Wilder penetra no dia a dia dessa que é uma típica companhia americana, para revelar sua rotina com uma trama recheada de corporativismo, favorecimentos, traições, mentiras e acobertamentos. Vale prestar atenção no magnífico trabalho da Direção de Arte (premiada com o Oscar) na criação em estúdio do escritório da seguradora. Nela podemos observar os contrastes existentes entre um antigo de trabalho daqueles tempos com os modernos que conhecemos hoje em dia, onde a automação reduziu enormemente o número de funcionários.

A ambição de C.C. Baxter leva-o, certa vez, a cair na besteira de emprestar seu apartamento a um dos chefes para uma escapadela amorosa com uma de suas subordinadas. Nos anos 50, os hábitos eram muito diferentes, e a complexidade das aventuras extraconjugais exigiam uma  grande dose de criatividade e engenharia, dos incautos infiéis. O personagem de Lemmon representa um conflito essencial muito comum no mundo cinematográfico, mostrado pelo diretor, por ser ao mesmo tempo ingênuo e oportunista, mas que no final termina por se redimir tornando-se um bom sujeito. O problema é que o executivo acaba contando para os demais colegas chefes, e agora já são vários os que fazem visitas regulares ao seu apartamento com o mesmo fim. No início ele enxergou sua atitude como uma boa estratégia para conseguir uma ascensão mais rápida na empresa. Mas vai se arrepender quando a situação começa a mudar no momento que passa a se interessar por Fran, O personagem de Lemmon, mostrado pelo diretor, representa um conflito essencial muito comum no mundo cinematográfico por ser ao mesmo tempo ingênuo e oportunista, mas que no final termina por se revelar um bom sujeito.


A senhorita Kubellik e C.C. Baxter.
Com seu estilo crítico da sociedade de sua época, Billy Wilder é um dos mais mordazes críticos do estilo americano de viver. Contando também rara sensibilidade para captar o que se passa nos escaninhos da alma humana, Wilder consegue criar uma preciosa relíquia com este trabalho. O filme borda assuntos que ainda eram tabu para o início dos anos 60, como suicídio, adultério, sexo livre e a relação da mulher com seus superiores. Hoje as situações mostradas no filme seriam pouco prováveis de ocorrer, pois existem leis que inibem e protegem as mulheres de sofrer este tipo de constrangimento. Com competência e sensibilidade para tratar esses assuntos, Wilder consegue sem deixar descambar para o vulgar ou cair nas armadilhas das comédias românticas, explorar uma questão importante como a diferença entre o que cada um é na realidade e o que se aparenta ser, e, consequentemente, os conflitos gerados por estes dois opostos. 



Wilder dando orientações a Fran.
E essa questão 'entre o que se aparenta ser e o que se é na realidade' trata-se exatamente do caso dos personagens centrais da trama. C.C. Baxter passa boa parte de seu tempo representando: para os vizinhos, principalmente o médico, parece ser um incorrigível Don Juan; para os executivos, o funcionário gente fina e ambicioso; para a srta. Kubellik, sua preferida, um gentleman. Já a srta. Kubellik é uma colega de trabalho bem-humorada, aparentemente recatada que não sai com qualquer um. Mas o que ele descobre mais á frente, é uma moça perdidamente apaixonada pelo chefe, casado, e ela o sabe, o que não a diferencia das outras que frequentam o apartamento. No caso dela, o choque entre seus dois mundos, o real e o que aparenta ser é tão doloroso que vai levá-la a uma tentativa de suicídio.

Com sua habitual visão cáustica, Wilder vai ao logo do filme questionando os vícios de uma sociedade pautada pela corrupção, ambição, dinheiro e busca desenfreada por posição custe o que custar. Passados quase sessenta anos de seu lançamento, percebemos que nada mudou, o homem segue com as mesmos vícios de comportamento denunciados no filme.

Outra questão essencial abordada por Wilder é a relacionada à solidão do homem e o que se passa no íntimo de sua alma, mostrando seus conflitos e as inevitáveis armadilhas que a vida costuma  pregar e como reagimos a elas. No final a mensagem de Wilder mostra que sempre será possível se redimir, por mais enodoados que se possa estar. Embora o filme apresente situações que fora do seu contexto podem ser ofensivas, sua natureza essencialmente positiva, com o personagem redimindo-se no final, leva-o a ser encarado como uma celebração aos bons valores morais. 


C.C. Baxter envolvido com seus cálculos.
Baxter vai aos poucos descobrindo que sua opção para progredir profissionalmente tem lá seus espinhos. Que não seria tão fácil como havia imaginado. Os primeiros percalços começam a aparecer com o fim de sua privacidade, e pioram muito quando se apaixona pela bela ascensorista. srta. Kubellik, que se encontra em seu apartamento com o big boss da companhia Jeff D. Sheldrake, interpretado por Fred MacMurray (1908-1991). Com a técnica usada por Wilder, durante a primeira metade do filme todo mundo já sabia que a mulher que Baxter ama está frequentando sua cama para ficar com Sheldrake.

Um dos momentos deliciosos do filme é quando Baxter tenta equilibrar a complicada situação que se meteu, como na dos famosos pratos chineses. Ou seja, a rotina de entra-e-sai de seu apartamento provocada pelas constantes solicitações dos chefes da seguradora. Como comédia de costumes, Com Se Me Apartamento Falasse Wilder faz uma dura crítica à hipocrisia da sociedade americana que sempre tentou jogar sob o tapete toda a sujeira de seus bastidores. Mas Wilder consegue fazê-lo com sua classe e refinamento de sempre. Entretanto, hoje os tempos são outros, o mundo acordou e esta propaganda já não funciona mais com a eficiência de antes. Os americanos mesmos se auto exorcizam em relação a muitos temas como fizeram em relação às guerras que se viram envolvidos, em filmes consagrados como Platoon (1966), Amargo Regresso (1978) e Appocalypse Now (1979),  e mais recentemente com Guerra ao Terror (2008), para ficar só nestes. Há!, não podemos esquecer de Nascido em Quatro de Julho (1989).

Fran recebndo cuidados após a tentativa de suicídio.

Srta. Kubllik, alma inocente? - nem tanto; afinal sabia que seu amor era casado. Inocente, acredita que Jeff a ama verdadeiramente e que está prestes a se separar para, enfim, levá-la para o altar. Porém, diferentemente do mundo de sonhos, a vida real tem muito lobo mau. Chega o Natal, e, na festa da empresa, a cândida Fran descobre que a fila de conquistas do executivo é de dar inveja a Don Juan. Após uma discussão com ele no apartamento de Baxter ela tenta suicídio ingerindo vários comprimidos. Ao chegar a seu apartamento Baxter encontra a jovem pela qual está apaixonado, em estado crítico e apela pela ajuda de seu vizinho, o médico Dreyfuss, vivido por Jack Kruschen (1922-2002). Sua relação com o vizinho é outro dos momentos deliciosos do filme, pois esse acredita que o entra-e-sai do apartamento de Baxter se deve à sua vida desregrada de conquistador. Com muita dedicação os dois conseguem enfim salvar a vida da jovem.


O ingênuo e a mocinha jogando cartas no final.
Alternando momentos de alta dramaticidade, como os vividos com a tentativa de suicídio e ótimas situações de refinado humor, Se Meu Apartamento Falasse deixa sua marcar como um dos maiores filmes do gênero. Comédia bem ao estilo de Wilder, com um roteiro original de alto nível, diálogos brilhantes, direção enxuta e segura, situações cômicas sem apelar para o pastelão e, de quebra, três grandes atores nos papeis central. A nota triste fica por conta da não premiação de Jack Lemmon, que interpreta um personagem de personalidade ambígua, ambicioso. conivente, explorado, apaixonado; mais um grande equívoco da velha Senhora.   

Reparem que até o final de Wilder é original: nada do clichê de filmes românticos que terminam com um grande aquele costumeiro beijo cinematográfico dos amantes. O final feliz que sela a cumplicidade do casal é feito com uma simplória partida de baralho. 
Por Luiz Alvarenga

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